segunda-feira, 28 de março de 2016

Admissão




Admissão


É difícil admitir certos fatos,
Mas se não fizer isso, não vou conseguir me mover,
Vou cavar minha cova patinando sempre no mesmo lugar;

Vamos lá:
É difícil admitir que cresci sem refletir muito sobre o que sempre pareceu ser a ordem natural das coisas,
Uma ordem que não nasce da natureza das coisas,
Mas da vontade do homem.

Aprendi que as coisas têm de ser organizadas, porque o caos é o inferno,
Aprendi que qualquer organização é melhor do que nenhuma.
Qualquer uma.

Aprendi a aceitar a ideia de que as pessoas são naturalmente más,
Que só com mecanismos de repressão é possível conviver em sociedade.
Aprendi que os mais frágeis, os rebentos, os miúdos,
Aqueles que deveriam ser protegidos como plantas delicadas dos predadores adultos,
Também aprendem muito cedo o gosto pela perversão.

Aprendi desde o início que o escárnio dá um prazer imenso,
Que diminuir o outro traz um bem-estar tão pleno e poderoso
Que é quase uma das melhores e mais antigas sensações que estão lá,
Acomodadas na prateleira das minhas armas de sobrevivência.

É difícil admitir, mas é melhor não enrolar muito e soltar logo o verbo.

Não tenho a menor ideia de quem eu sou ou do que eu estou fazendo aqui,
Mas quero estar por cima. Quero ser a melhor.
Aprendi que a vida é uma competição, uma luta perene,
Até o último suspiro,
Na qual ocasionalmente encontramos aliados passageiros,
Mas que no fundo estamos sós. Sempre sós.

É preciso competir desde cedo.
Todos os pequenos aprendem isso.
Têm de se destacar para merecer atenção.
Se não chamam a atenção, não são nada.

Aprendi que ser humilde é uma das maiores bobagens que alguém pode fazer na vida,
Que o humilde é a coisa que fica lá, exposta para todo mundo chutar.
Aprendi que os santos são enaltecidos para nos mostrar como não somos
E como nunca deveremos ser.

Aprendi que tenho de ser funcional,
Não para exprimir aquilo que tenho dentro e que quer sair, crescer, interagir, construir, criar
Devo apenas fazer o máximo para moldar-me e transformar-me numa peça,
Naquela que falta em alguma engrenagem fumacenta,
De uma máquina qualquer que esgote tudo que está ao redor na manutenção da própria existência.

Aprendi que a justiça serve ao poder, que o poder é do mais forte, que o mais forte venceu.
Aprendi que existem remédios para quem sofre de sensibilidade,
Que se dopar às vezes é ilegal, mas nem tanto.
Que todo mundo acaba se dopando, mais cedo ou mais tarde.
Porque o mundo é uma selva,
Todo mundo tem que aprender a pisar nos cadáveres dos próprios sonhos,
E seguir adiante, de cabeça erguida,
Usando a melhor arrogância que conseguir tirar do bolso ou comprar na esquina.

Aprendi que aqueles que desistem e perdem a vontade de viver são tristes exceções,
Embora a depressão seja algo extremamente comum e exatamente a mesma coisa.

Aprendi que a vida em si pode perder o sentido,
E que quando isso acontece, é melhor ter meios para comprar um.

Aprendi que demonstrar um pouco de simpatia pelos mais fracos às vezes é vantajoso.
Que fingir interesse pelos outros pode abrir portas, para mim.
Tudo isso desde que haja um limite bem definido,
Um verdadeiro abismo,
Entre o que eu digo que é bom para os outros
E o que considero satisfatório para tudo o que se refira à minha pessoa.

Na verdade, eu sei que não sou o outro.
Eu quero deixar bem claro que pertenço a uma categoria bem melhor que a do outro.
Esse outro é diferente de tudo o que eu identifico como pertencente ao meu mundo,
Esse outro não vale quase nada.
Esse outro só presta para servir,
De preferência, sempre dócil e satisfeito,
Burrinho, mas suficientemente bem-educado.

Aprendi que é melhor assim. Que é natural que seja assim.
Aprendi tudo isso na escola, nas aulas de História, nas de Educação Moral e Cívica,
No recreio,
No isolamento humilhante das crianças que fediam a urina,
Que tinham cabelo crespo e não alisavam, que não usavam shampoo.
Nas frases ditas com rispidez àquelas que não mereciam ser bem tratadas,
Aos filhos de zés-ninguéns.

E até hoje sou assim e
Não sei o que fazer comigo.

Infelizmente.

Sou uma mulher de alma bem brasileira,
Uma entre tantas herdeiras de um país cuja história é uma sucessão de experiências infames em matéria de sociedade.
Sou mais uma que tem pavor da brutalidade que acontece em cada esquina,
Mas é totalmente indiferente às suas raízes profundas.
Sinto que os horrores da senzala estão impressos na minha alma,
O problema é que eu simplesmente não consigo imaginar meu país sem ela.

É difícil admitir, mas é verdade.


quinta-feira, 10 de março de 2016

Entrevista no Blog Listas Literárias

O Douglas Eralldo do Blog Lista Literárias publicou uma conversa que tivemos sobre o livro "Memorial das Flores" e outros temas ligados à literatura. É sempre bom poder trocar ideias e fiquei muito contente em participar. Deixo aqui o meu agradecimento ao Douglas, que foi muito gentil em propor a entrevista. Para conferir a matéria na íntegra, clique no título da entrevista:

10 Perguntas inéditas para a escritora Mariângela Souza Ragassi

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

O caminho



Nos buracos deste estranho caminho
A estrada teima em desaparecer a cada passo
Os pés pisam no vazio,
Mas os joelhos registram os tombos, um a um
No caminho não há placas
Não há indicações
Não há qualquer alusão aos perigos
Não há faixas de segurança
Às vezes falta luz
Outras vezes falta horizonte,
É noite densa como asfalto
É dia difuso na neblina da alma,
Os olhos não enxergam bem
Mas todos os sentimentos avisam
Que no caminho não há nada
Além daqueles que fazem com que haja um caminho.


Mariângela Souza  Ragassi
Assisi - Fev. de 2016

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O blog "Biblioteca do Murilo" fala sobre o Memorial das Flores

Esta é a resenha que o Murilo Jr., de Ananindeua, Pará, tão atenciosamente publicou no seu blog "Biblioteca do Murilo":

Terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Memorial das Flores
Autora: Mariângela Ragassi.
Ed. Chiado. 1a edição- Nov. 2015.
Lisboa - Portugal.


Enredo:
Flora é uma mulher em crise. Um casamento desfeito há 7 anos ainda a entristece.
Com a morte de Anna, sua mãe, só lhe restava a tia , que agora falece , sendo Flora chamada a sua residência para recolher os pertences.
Através de uma caixa de fotografias, dá-se o início o memorialismo do título.
A narrativa é tão condensada que me abstenho a desenvolver mais o enredo, para evitar revelar os mistérios que serão desvendados ao longo do texto.
Os temas em destaque são: Gravidez indesejada, rompimento de noivado, solidão, machismo, angústias existenciais , entre outros.

Características do texto:
Prosa realista, objetiva, levemente poética (pelo uso de metáforas e comparações ).
Narrador onisciente, porém não onipresente.
Fluxo: Rápido.
Composição: Capítulos breves, com intercalações entre presente e passado (este em maior volume).
Prosa verossímil, com atenção focada nos momentos dramáticos das vidas de Flora, Anna (mãe de Flora) e Gemma (irmã de Anna e tia de Flora).
Bastante reflexivo.
Sutilmente a autora vai expondo suas ideias sobre a vida, a morte, as paixões amorosas, nas figuras das personagens.
São cenas dos dramas da vida moderna de mulheres do sec. XX.
Há também momentos de descrições psicológicas dos mecanismos de defesa ,como p.ex. Forte recalque após violência.

Notas do resenhista:
Desconfio que a autora tenha bebido da fonte dos existencialistas franceses do pós- 2a guerra, principalmente das análises da escritora Simone de Beauvoir, que refletiu a vida e as possibilidades da condição feminina.
A questão da liberdade humana também ocorre no Memorial das Flores, como p. ex. as tomadas de decisões capitais num Universo silencioso. Aqui a escritora Angela Ragassi vai exemplificar de forma personalíssima o que Beauvoir sistematizou.

Sobre a Autora:
Mariângela Ragassi nasceu em 1969 em Ourinhos, interior de São Paulo, Brasil.
Escritora talentosa foi premiada em 1986 no concurso literário "A paz no Brasil e no mundo", promovido pelo Estado de São Paulo.
Classificou-se em 3o lugar no Mapa Cultural Paulista de 2003/2004, com o conto: Lucicleide na Janela.
Memorial das Flores é seu primeiro romance.


terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O blog "Listas Literárias" fala sobre o livro "Memorial das Flores"

10 Bons Motivos para conhecer Memorial das Flores, de Mariângela Souza Ragassi

Olá Leitores! Hoje convidamos vocês a conhecer mais uma autora nacional e seu trabalho literário. No post de hoje selecionamos 10 bons motivos para conhecer Memorial das Flores, de Mariângela Souza Ragassi, confira:

1 - Memorial das Flores é a primeira publicação da autora Mariângela Souza Ragassi, escritora engajada que mesmo antes da publicação deste trabalho conseguiu destacar-se em premiações e concursos literários;

2 - Dentre as premiações da autora no campo da literatura, ensino e cultura, podemos destacar que em 1986 foi premiada no concurso literário “A Paz no Brasil e no Mundo” promovido pelo Governo do Estado de São Paulo. Em 1998 venceu o prêmio “Uma Professora Muito Maluquinha” promovido pela editora Melhoramentos e ainda, Classificou-se em 3º lugar no Mapa Cultural Paulista de 2003/2004 com o conto “Lucicleide na Janela”;

3 - Portanto, a autora que em 1998 concluiu o curso de licenciatura em Artes Plásticas na Unicamp - Campinas. atualmente radicada na Itália desde 2006 e trabalhando no setor editorial com traduções para o português, possui bastante intimidade com as letras que indica seu compromisso para com os livros;

4 - Contudo, penetrando diretamente na obra, o livro  foi escrito na cidade de Assisi, Itália, no período de 2014 a 2015 e é uma história que fala sobre quanto é difícil lidar com o acúmulo desordenado das várias camadas de memória que compõem a nossa identidade;

5 - Assim, a narrativa conta a história de três gerações de uma família dividida entre o Brasil e a Itália, cujos integrantes encontram-se aprisionados nas malhas do tempo, como se as suas vidas fossem sobrepostas e determinadas pela recombinação de acontecimentos que se repetem incessantemente, criando uma armadilha, um jogo de espelhos que segrega a memória em compartimentos múltiplos e cada vez mais inacessíveis;

6 - E para quem se interessou pelo trabalho da autora, é possível encontrar nessa página uma série de endereços onde vocês podem adquirir o livro, na Europa ou no Brasil. Na mesma página vocês encontrarão informações necessárias caso queiram comprar o e-book num preço super acessível e justo;

7 - Além disso, vocês também podem encontrar uma prévia do estilo de texto da autora acompanhando seu blog onde é possível perceber sua qualidade e compromisso com a literatura, além é claro de encontrar todas as informações sobre seu trabalho;

8 - Mas para além da temática da memória, os leitores do livro encontrarão também histórias de relações amorosas, e a promoção de encontros entre o passado e o presente em que a reconstituição de antigos acontecimentos é necessária;

9 - Da mesma forma, pode ser interessante observar como a autora trabalha a ambientação de sua obra já que a personagem principal é Flora, uma tradutora brasileira de 30 anos que vive na Itália, país de origem do seu avô. Em 2014 ela é obrigada a voltar às pressas para o Brasil; vejamos que esse é um tipo de situação que pode promover um debate sobre construção de identidade relacionada a vivência em dois países distintos;

10 - Enfim, Memorial das Flores parece bastante promissor pois apenas por sua apresentação já podemos perceber o cuidado e esmero da autora na divulgação de seu trabalho. Certamente é uma boa oportunidade para conhecermos coisas novas e diferentes na nossa literatura, numa obra "binacional" que vale colocar lá em sua estante do Skoob para futuras leituras.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Lucicleide na janela

(Conto premiado em terceiro lugar no Mapa Cultural Paulista 2003/2004)


Sentada na janela era fácil ver toda a gente que passava. Gente de todo o tipo. Homem bonito, feio, nojento, alto, gordo, desajeitado. Mulheres também de todo jeito. Mulher meio limbosa, mulher tipo barril, mulher charmosa, exagerada, cafona, na moda, barata. Era um volume de gente que passava com suas vidas, suas saias, suas calças. A janela era alta, a casa era daquelas antigas que davam direto na rua, parede dividindo o lado de dentro do fora-mundo.
Na verdade, ela não se sentava na janela com as pernas dependuradas para fora. Não, já era moça. Usava uma ponta da cômoda pra apoiar as nádegas e, no batente, os cotovelos pareciam brotos que saiam de dentro da madeira rachada. Mãos apoiando o queixo, cortina de voal logo atrás. Era um quadro onde só se mexiam os olhos da moça, olhos escuros, apertados. Seus olhos olhavam mas pareciam também mastigar as imagens como se fossem comida, pipocas carameladas para a alma.
O cenário era sempre o mesmo: outras casas lá do outro lado, fios elétricos ligando tudo, rua e calçada, uma árvore. Os personagens mudavam o tempo todo e a menina lá, só olhando. Tanta coisa pra fazer tem essa gente, tanto lugar pra chegar. Aqui é um ponto no caminho – pensava a moça – ninguém sabe, mas está todo mundo pagando pedágio pra mim, porque quem passa eu capturo, por um tempo pequeno, mas capturo...
- Lucicleide, saia daí! Quantas vezes tenho que falar para não perder seu tempo nessa janela! Que é que você está querendo? Um calo no cotovelo, é? Lucicleide!!!
E Lucicleide nem respondia. Tinha tido aula naquele dia. Colégio, sabe, todo dia. Colegas, conversas, matérias, detalhes, muitos detalhes. – Haja memória! – pensava Lucicleide – Aqui é diferente, na minha paisagem. Aqui tem muita coisa, mas nada se liga a nada. Não tem hoje, nem ontem, nem amanhã, nem datas, nem nomes, nem história. Seqüência não tem. Memória assim do tipo da escola cansa.
- Mãe, já tô indo! – responde a moça depois da décima vez em que a mãe esbraveja.
Mas que estranha é a minha mãe! Ela também olha tudo o dia inteiro, vê se tem poeira, se tem mancha, se brilhou, vê se fritou, se cozinhou, se desamassou. Vê tudo, tintim por tintim o dia inteiro e vem implicar comigo aqui, na janela. Acho que ela implica porque quando eu olho, serve só pra mim o que eu vejo. Curiosidade barata, coisa totalmente ‘a toa. Não serve pra nada. É isso que ela acha. Quando eu olho para a minha mãe, depois de tanto olhar pela janela, vejo um bem-querer bem-querido, meio nervoso, meio aflito, uma vontade sem tamanho de acertar em tudo, uma certa lambança na busca da perfeição das minúcias. Essa é minha mãe: Dona Clô.
Janta, lava a louça, arruma tudo. Dormir cedo. Mas Lucicleide não resiste: há uma fresta mais aberta entre os vãos da veneziana. Coisa boa ... gente da noite vai passar. O andar é mais lento, cadenciado. Mulher de salto alto, batom mais vermelho, mais perfume. Gatos passando, fuçando lixo, cachorros vadios. A bebedeira é mais profunda `a noite, madrugada adentro. A noite joga seu manto, o coração parece se comprimir no peito com a pressão que o escuro faz. As coisas se iluminam só parcialmente, um lado aparece, o outro esconde, meia-lua, meia-face
Bem na frente da janela tem um poste, aquele de onde tudo se origina, para onde tudo converge. Parece que o mundo está ligado a ele, é fio que não acaba mais. Holofote do meu show. O balé de insetos forma uma bola ao redor da lâmpada. Parece um átomo. Acho que deu sono ...mas... olha só... o que é aquilo? Alguém sentou bem debaixo do holofote! Que exibido! Não, não é exibido, ele nem sabe que estou olhando. O olhar dele é meio perdido, é moço, é bonito, queixo meio quadrado, nariz sensível, olhos escuros, cílios de véu. Sempre gostei de ver cílios compridos em mulheres, cílios com rímel, véu de segredos para os olhos. Nunca vi cílios de homem... mas esse aí tá tão bonito! Olhar de véu, olhar velado. Vela na escuridão da noite. Ai que aperto no peito! O que você faz aí? Parado, sozinho, pasmado, calado. Por que é que você não passa? Saia daí, anda! Volte pro seu canto, pros braços que te esperam, pijama de dormir quentinho, aconchego de cama feita. Saia dessa sarjeta suja que você parece rapaz asseado. Aí tem gente que cospe, tem bicho que mija, infinidades de solas passam misturando toda a sujeira do mundo. Mas que olhos escuros você tem ...
O rapaz saiu andando, de repente. Ânimo meio desanimado de marionete. Levantou-se e foi andando sabe-se lá para onde. Lucicleide abraçou o travesseiro. Dormiu sono de marinheiro, num mundo que balançava que nem o mar. Olhos escuros olhando para o nada. No sonho ela tomava coragem, fazia um sinal pela fresta da janela, e ele olhava para ela. No sonho, só sonho.
Café com pão de manhã. Sou personagem solta na rua. – Oi Marina. Oi Suzete. Blá, blá, blá, presta atenção. Matemática. Ciências. Memória, muita memória.
- Você é legal, Lucicleide, mas é um pouco diferente, sabe?
- Por que, Madalena?
- Sei lá, é meio quieta. Gente boa, mas parece que não liga muito pra nada.
- Que besteira, Madá. Eu sei de tudo que acontece, só que não dá pra falar de tudo que eu sei.
- Até parece que é esse o caso... Tá querendo dar uma de sabichona pra cima de mim? Do que é que você sabe que eu não sei?
- Você não ia querer saber.
- Ah! Agora conta!
- Sabe o que é, Madá, é que eu gosto de olhar bem as pessoas, e cada coisa que eu vejo me mostra um pouco como é a vida de cada uma...
- Grande coisa! Isso até eu faço. Sei onde a Ana comprou aquele tênis, sei porque a Cláudia só usa calça preta, porque a Kely não tira aquela faixa de cima da orelha. Isso todo mundo faz.
- É, você tem razão. Eu é que sou meio tímida mesmo.
É, Madá, melhor parar por aqui essa conversa. Me conta do tênis da Cláudia, eu escuto. Eu me entendo comigo lá na minha janela.
Será que hoje ele vem? O que está acontecendo com você, Lucicleide? Está esperando que o rapaz apareça? Não, não é vontade de ver o rapaz, eu só queria ver aquela cena de novo. Ela foi bem bonita... Aquela cabeça iluminada pela lâmpada atômica. Aquele olho mundo-sem-fundo, buraco negro, ímã do nada.
Minha mãe me perguntou hoje quando é que eu vou me interessar em fazer alguma coisa de verdade. – Nem namorado você tem! – desabafou ela. Coitada...Acha que está criando um bicho estranho dentro de casa, e que isso pode não dar em nada.- Ô mãe, desencana. Eu só não sei o que eu quero. É a idade, sabe,mãe. Deixe que eu me entenda aqui com a minha janela. Assim, desse jeito que não faz mal a ninguém. Só mais um tempo, mãe. Só mais um tempo. Se eu fizer isto quando estiver mais velha vão dizer que estou sofrendo de depressão. Desinteresse adulto pelo mundo é doença séria. Eu estou quase lá, mas ainda não cheguei.
Às vezes eu acho que se eu fosse um vaso na janela, tudo seria melhor. Que bobagem a minha! Eu gosto de ser gente, aliás, acho que sou muito gente. Há tantas pessoas por aí interessadas em coisas sem o menor sentido. Olha só aqueles homens de terno ali. São pessoas interessadíssimas em alguma coisa muito séria. São mercadorias de valor no mercado de trabalho. Que lindo papel! Aplausos para eles! Ah, Lucicleide... não seja tão dura com eles. Olha aqueles rapazes em grupo, escuta só o tipo de conversa:-A Lúcia é uma gostosa, aposto que se eu chegar junto...- brincadeirinha sexual. Bola de gude, figurinha, vídeo game, carro, mulher, tudo na mesma categoria. É até divertido. Sei lá, hoje estou meio amarga. Acho que é porque minha mãe veio com aquela estória de “nem namorado você tem”. Não é só incompetência minha não, sabia? Que culpa eu tenho se os homens parecem todos uns peixes de aquário? Eles pensam assim: “se for macho eu como ( no sentido de tirar pedaço, pra mostrar que é melhor que o outro), se for fêmea eu como ( no sentido de foder, porque ele é melhor que ela).
Ah! Que brisa boa tem essa noite! Um cheiro de murta doce. Flor branca muito sensual esta murta. Dá até vontade de dançar. Olha lá que casal apaixonado. Ele olha pra ela com ternura. Olhar de estrela. Bem bonito isso. Ela sorri meio encabulada. O peito dela até estufa de satisfação. Ele segura firme na cintura dela. Bonito isso. Ai que ódio! Esse cheiro de murta mexe comigo! Parece que o quarto ficou pequeno, meu quarto querido tão confortável. Que droga! Tem algo dentro de nós que parece querer jogar-nos para fora de nós mesmos! Que saco essa força, esse instinto! Estou me sentindo sozinha, sozinha, sozinha.
Lágrimas de Lucicleide. Líquido precioso, tinta transparente que escreve no rosto um pedido de socorro. –Será que tem alguém aí que pode me entender? Alguém que possa fazer parte do meu mundo sem pisotear as flores da minha sensibilidade? Como eu quero, ah, como eu quero conhecer alguém de verdade, poder lhe falar tudo, tudo e passear de mãos dadas. Eu daria tudo a esse alguém. Daria meu corpo, meu sangue, minha vida a alguém que gostasse de passear com minha alma. Que droga!
Mais e mais lágrimas de Lucicleide. Quem dera essas lágrimas escorressem pela janela e formassem uma poça na frente da casa. Os rapazes fariam fila para olhar na poça mágica. Aquele cujo rosto refletisse sua imagem na água de lágrimas seria seu verdadeiro e único amor.
Adormeceu Lucicleide. De manhã outro dia, depois mais outro, e, assim o tempo foi seguindo seu curso, e a moça foi sentindo que o tempo é um pouco como o vento que passa de leve e transforma a paisagem. O tempo é um vento que sopra a idade. A janela foi ficando cada vez mais sem graça. Aquela força que nos joga para fora de nós mesmos cresceu mais e mais em Lucicleide. Ela percebeu que o pedido de socorro tinha que ser feito diretamente, corpo a corpo. Tinha que ser gritado, anunciado aos quatro cantos: eu estou sozinha, sozinha, sozinha!!! Eu quero ser útil, ter um papel no mundo adulto, enfim, quero me atolar com as quatro patas na realidade humana.
Ficara bem mais ativa a menina da janela, tão ativa que até se esquecia de quem era ela. É bem verdade que os momentos para reflexão ficaram bem mais raros. Alguma emoção mais forte remetia a agora mulher `a menina-moça do passado. Quando isso acontecia ela dizia para si: eu sou eu mesma, eu mesma...
Ela disse isso todas as vezes em que chorou como naquela noite no passado. Ela abriu seu jardim secreto e algumas vezes se sujeitou aos inevitáveis pisoteios de pés masculinos explorando o universo delicado das mulheres. Viu como o mundo é cheio de espinhos, de frestas, de arestas. Aprendeu aos trancos que conviver é uma arte, que o mundo é uma intersecção de mundos que se expandem e se retraem. Aprendeu com uma certa dor que é impossível ter controle sobre grande parte da própria vida, que somos mais ou menos como a gaivota que voa no céu: ora bate as asas, ora plaina no firmamento. Somos a convergência de muitas forças que nos movimentam e paralisam, que nos fazem correr de medo e que nos confortam. Lucicleide aprendeu a ser esposa, a ser mãe, aprendeu a ser mulher. ‘As vezes ela vai até a janela e chama:
- Venha Luciano, meu filho! Está na hora do jantar! – ele nem responde e ela insiste – Venha meu filho! Acorde pra vida! O que é que voce quer ganhar ficando aí parado? E ele continua lá, com o olhar meio perdido, olhar de véu, olhar velado...vela na escuridão da noite...


Mariângela Ragassi


Caraguatatuba, SP